quinta-feira

autografia

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo      uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
            à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
            existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
eu o pico do Everest 
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá
            passaram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
            passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica      irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
            em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama      no espaço duma pedra      em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
            lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
            lagos de incêndio e o teu retrato grande!
mário cesariny
queria de ti um país de bondade e de bruma / queria de ti o mar de uma rosa de espuma.
mário cesariny

quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar....
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi.
mário de sá carneiro

quarta-feira

sexta-feira

não estava à espera de ler Hölderlin

camilo escreve a perdição na prisão do porto.
também eu estou preso, em lisboa, irremediavelmente preso. mostras-me a tua trança e eu escrevo-te mostrando o barco que parte. 
talvez um dia sem degredo na Índia.

como é que se pode viver sem se ter lido a emily brontë?

o monte dos vendavais é o mais belo livro para se pousar no seu regaço
(regaço de Belisa)

I would sing to myself and get so lost in it that I would cry.
julianna barwick
TODO O ANJO É TERRÍVEL

quarta-feira

Mon film naît une première fois dans ma tête, meurt sur papier; est ressuscité par les personnes vivantes et les objets réels que j'emploie, qui sont tués sur pellicule mais qui, placés 
dans un certain ordre et projetés sur un écran, se raniment comme des fleurs dans l'eau.
r. bresson